Sabemos que há muitas fomes e carências. No entanto, a fome de comida, a mais conhecida de todas, constitui-se em um erro muito grande por não mirarmos o alvo social.
Sempre que pensamos em fome, o que vem à mente no primeiro momento é a falta de comida, o medo primordial do ser humano. A alimentação é uma necessidade literalmente vital. Esse temor ancestral hoje é uma violência em grande medida desnecessária, evitável, que subjuga, refreia existências e impede o desenvolvimento físico e mental de um ser humano.
O maior rei ou rainha, intelectual, magnata, seja quem for, sem comida, será apenas um ser humano indefeso e vulnerável, como qualquer outro nessa condição. Desprovidos dela, todos morreríamos. Não bastasse esta constatação, sabemos que o alimento é remédio primário e natural para nos manter sadios. É dele que vem a vitalidade. Hipócrates, considerado o Pai da Medicina, cerca de quatrocentos anos antes de Cristo, já dizia: “que o seu remédio seja o seu alimento; e que seu alimento seja seu medicamento”.
O alimento é tão primordial para nossa existência que tem interface com absolutamente tudo o que nos diz respeito, estando no cerne do desenvolvimento da própria civilização e das relações sociais. Ele tem relação com a política, com a economia, com a nossa cultura geral. Não por acaso, a divisão do pão, ou o cultivo da vida, se faz presente na maioria das religiões existentes. Impedir que pessoas tenham acesso ao alimento, portanto, é privá-las de seu direito sagrado à vida, uma “técnica” cruel utilizada arbitrariamente por muitos tiranos para dominar um povo em vários momentos de nossa história. Nesse sentido, podemos dizer que a fome tem um viés político muito forte, pois muitas vezes, não falta alimento, o que falta é o acesso ao mesmo, como no caso brasileiro. Hoje, existem milhões de brasileiros que vivem em condições de insegurança alimentar. Dessa forma, é correto dizer que comer é um ato político e alimentar é um ato de consciência social e de amor. Na natureza, a arquitetura da existência já prevê que toda a mãe seja capaz de produzir o alimento para seu filho, garantindo-lhe os nutrientes necessários, imprescindíveis, para existir e se desenvolver.
A fome é um sofrimento social evitável, a qual ocasiona uma série de alterações no funcionamento normal do organismo de quem a sofre, desde a danificação do bom desempenho de todos os órgãos do ser humano até a baixa imunidade, levando-o a contrair doenças e desenvolver graves danos ao sistema nervoso: perda de neurônios e mudanças psicológicas e psíquicas, influenciando no nível de felicidade ou dor do indivíduo. Não existe algo mais perturbador do que passar fome e mais triste do que ver os seus filhos nessa situação.
Lutar pela democratização do alimento é defender o direito universal de cada ser humano à vida, obrigação de qualquer sociedade ou estado de direito na face da Terra.
Texto baseado no livro Inteligência Social – a perspectiva de um mundo sem fome(s), escrito por Luciana C. Quintão.