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Sim, temos fome! Por quê?

Sim!  Temos fome! Por quê? 

Fundei a ONG Banco de Alimentos há 25 anos, uma iniciativa da sociedade civil para combater a fome através do combate ao desperdício de alimentos, dois contrassensos que por aqui andam de mão dadas. À época me sentia pregando no deserto.

A  fome  é secular no Brasil, vem deste os tempos coloniais, e suas origens permanecem vivas  até hoje, em um sistema agrícola que privilegia mais o mercado externo em detrimento do interno e em questões estruturais que prendem nosso desenvolvimento econômico e social e que, de fato, nunca são resolvidas. Apesar da fome ser uma questão muito “velha” parece que, realmente, só foi descoberta na pandemia, escancarada à população em geral, sendo assunto assíduo dos meios de comunicação e do discurso de alguns políticos.

Não foram poucas, nas últimas décadas, as iniciativas de criação de órgãos públicos, políticas e conselhos, inclusive ministérios, para o combate à fome ou para garantir a segurança alimentar da população brasileira. A lista não é pequena. Em 2003, nascia o Programa Fome Zero para “resolver” a questão. Em 2006, surgiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, SISAN e, integrado a ele, foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, CONSEA. Na sequência, veio a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, CAISAN. Iniciativas envoltas em um arcabouço difícil de ser entendido pelo cidadão comum, que muitas vezes nem sabe de sua existência ou funcionamento.

No âmbito municipal, surgiram os Centros de Referência  em Segurança Alimentar e Nutricional, CRESAN, voltados à implementação da Política Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (PMSAN). Cabe ao CONSEA federal estimular estados e municípios a criarem Conselhos locais, articulando, portanto, os três níveis de governo: municipal, estadual e federal. Contudo, em um país que soma 5.568 municípios (IBGE, 2021), há poucos que contam com um CONSEA local. No estado de São Paulo, por exemplo, onde existem 654 municípios, apenas 86 possuem um CONSEA em atividade (CONSEA SP/IEA, 2018). Criado com base em um decreto de 1993, movido pelo Movimento Pela Ética na Política, de Betinho, o CONSEA federal foi  retomado recentemente propondo um novo (ou mais um) pacto contra a fome. Não devemos nos esquecer das secretarias de abastecimento e tantas outras  autarquias que existem!

Em meio ao vaivém das criações e destituições –  o próprio CONSEA Federal, por exemplo, foi desativado em 1995, reativado em 2003, extinto em 2019 e retomado em 2023 –  e da falta de um trabalho sincronizado, antes mesmo do próprio Fome Zero, várias propostas de leis importantes para combater a fome foram colocadas mas não foram promulgadas, a começar pelo Projeto de Lei 4.747, de 1998, ano da fundação da ONG  Banco de Alimentos, que deveria incentivar a doação de alimentos via isenção de responsabilidade civil ou penal do doador de boa fé de alimentos, a chamada Lei do Bom Samaritano, que acabou por caducar…

Apenas em 2020, em meio à pandemia, finalmente foi aprovada a Lei 14.016, dispondo sobre o combate ao desperdício e a doação de alimentos para o consumo humano, isentando os doadores de responsabilidade, a não ser em caso de agirem com dolo. Em janeiro de 2022, entrou em vigor a lei municipal 17.755 de São Paulo, que dispõe de sobre a doação de excedentes de alimentos dedicado à produção e fornecimento de refeições. Existem ainda outras poucas leis municipais, que precisariam se estender por todo o país! Tímidas, pouco divulgadas e abraçadas, fornecem, por enquanto, um impacto aquém do necessário diante do problema da fome, que só será revertido com o interesse de todas as classes que compõem a sociedade.

O fato é que durante todos estes anos, tivemos momentos de melhoria mas nunca houve um resultado que chegasse perto do razoável para realmente acabar com a questão estrutural da fome, ou para acabar com que eu chamo de várias fomes: não só de comida, mas fome de saúde, moradia, educação, justiça social. Os números de hoje estão próximos daqueles que existiam em 1998, ano de fundação da ONG Banco de Alimentos. Em 1998, 33,4% da população brasileira, ou 56,7 milhões de pessoas entre o total na época de 169,8 milhões de habitantes, viviam na pobreza, com até meio salário mínimo mensal, enfrentando algum grau de insegurança alimentar. Entre eles, cerca de 21 milhões de brasileiros poderiam ser classificados como indigentes, ou seja, em situação de insegurança alimentar grave, passando fome. Em 2022, temos 125,2 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar e, entre eles, 33,1 milhões em insegurança alimentar grave, passando fome. Sim, tivemos o impacto da pandemia, da guerra na Ucrânia, mas o fato é que a questão da fome é secular. São gerações e gerações, ao longo do tempo, às quais tem sido negado o direito a uma alimentação adequada, apesar de ser um direito previsto na Constituição brasileira.

Para enfrentar o problema, não bastam medidas emergenciais tomadas diante de pesquisas que apontam a gravidade da questão. Precisamos de um novo pacto, sim! Mas que envolva um conjunto de ações que indiquem como sair, de fato, da situação vulnerabilidade social em que vive a maior parte da população brasileira. Não há falta de alimentos no Brasil; o que falta para quem tem fome, em última análise, é dinheiro para comprá-los. Combater a fome significa combater a miséria, a distribuição desigual da renda, gerar empregos de qualidade, garantir o acesso permanente à saúde e à educação, que é a vara para qualquer um poder pescar o seu próprio peixe.

Os dados mais recentes divulgados pelo IBGE revelam que 62,5 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza (final de 2021). Dados da pesquisa As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil, do UNICEF, divulgados em fevereiro deste ano, mostram que ao menos 32 milhões de meninos e meninas até 17 anos (63% do total) vivem a pobreza em suas múltiplas dimensões, ou seja, englobando renda, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação (dados de 2019). Entre 2020 e 2022, houve uma piora expressiva principalmente nos indicadores renda, educação e alimentação. É a pobreza em suas várias dimensões, que traz como consequências privações e exclusões. Miséria gera miséria. E o nosso Brasil hoje é o 9o país mais desigual do mundo.

No área da educação, dados do Censo Escolar da Educação Básica 2022 apontam que 1,04 milhão de estudantes dos 4 aos 17 anos estão fora da escola, deixando de fazer parte dos sistemas de ensino.  O índice de crianças privadas do direito à alfabetização subiu em 2022 em relação a 2020, passando de 1,9% para 3,8%, segundo o UNICEF. O trabalho infantil contribui com esta realidade. Os últimos dados da PNAD Contínua em 2019 mostram que há mais de 2 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no país. Além de 16 milhões de analfabetos, o Brasil tem aproximadamente 38 milhões de analfabetos funcionais, pessoas acima dos 20 anos que não completaram quatro anos de ensino formal e/ou não sabem fazer contas básicas e interpretação de texto…

Não há como combater a fome sem assegurar o direito à educação, ao transporte, à saúde à moradia e, portanto, à renda. Como a ONG Banco de Alimentos, organizações da sociedade civil têm feito a sua parte. Bancos de alimentos, por exemplo, que pegam alimentos onde sobra e entregam onde falta, são equipamentos muito importantes para o combate à fome e a proteção do meio ambiente. Fazem a parte do governo, trabalhando com recursos próprios, inclusive gerando empregos e beneficiando toda a economia, mas com um custo muito alto, com entraves até para obter a isenção de cota patronal, o que dificulta a existência de mais bancos de alimentos da sociedade civil no país. Só recentemente, após muito empenho, a ONG Banco de Alimentos conseguiu obter o CEBAS (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social).

O Brasil é um dos  países que mais cobram impostos no mundo e um dos que menos devolve em benefícios à sua população. Também é um dos países que pagam melhor seus dirigentes no legislativo, executivo e judiciário. Imaginem se em vez destes 33 milhões de brasileiros passando fome tivéssemos 33 milhões de brasileiros autônomos pagando seus impostos, aumentando a riqueza da nação e com comida à mesa! Transferências de renda, como o cadastro único, são necessárias, mas deveríamos trabalhar para não que não sejam eternas e muito menos a única forma de se endereçar a questão.

São desafios antigos e estruturais. Para enfrentá-los, é preciso uma verdadeira mobilização e ações integradas de políticos, empresários, produtores e sociedade em geral que sejam perenes e não passageiras.

É preciso um pacto maior e mais efetivo. Um pacto que possa contemplar: 

  • melhor preparo dos gestores públicos para garantir a eficiência da gestão pública em sua integralidade, sem corrupção, com diminuição do déficit fiscal e sem desperdício do dinheiro público, com ética e transparência para legislar com justiça para todos;
  • mudanças estruturais nos sistemas econômicos, a exemplo do sistema tributário, geração de empregos e reforma política;
  • políticas públicas capazes de gerar bem estar para toda a população, colocando as pessoas no centro das decisões, com planos de governo bem estruturados (e não planos de eleição);
  • acesso à saúde, moradia digna e educação de qualidade, com oferta de educação básica e garantia de igualdade de condições para o acesso e a permanência dos estudantes nas instituições de ensino, evitando a evasão escolar;
  • crescimento inclusivo e combate à desigualdade e ao racismo estrutural;
  • fortalecimento da agricultura familiar e urbana;
  • melhor apoio em geral dos empresários em retornar para a sociedade ações que tragam evolução social;
  • prioridade à agenda de água e saneamento;
  • extensão do direito à alimentação a todos os brasileiros de forma permanente; medidas efetivas na área da segurança alimentar, sem que haja mais do mesmo; facilitação do reconhecimento dos bancos de alimentos da sociedade civil, pelo governo federal, como entidades de assistência social; redução do desperdício de alimentos; fortalecimento do CONSEA federal e estímulo à criação de um maior número de CONSEAs nos âmbitos estadual e municipal.

Um pacto maior e mais efetivo, para que possamos colocar em prática a nossa inteligência social em prol do bem comum, por um Brasil que possa eliminar as várias fomes de sua população e trabalhar pelo desenvolvimento sustentável dos brasileiros. Só assim conseguiremos erradicar, de fato, a fome de comida no Brasil.

Luciana C. Quintão, economista e fundadora da ONG Banco de Alimentos e do Projeto Inteligência Social, integrante da Rede Folha de Empreendedores Sociais e cofundadora do Pacto contra a Fome.

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